teimosia

teimosiaSou feia;
e é de agora, quando era criança eu era linda.
Mas eu sei aparecer.
Sei chamar a atenção, e gosto. E se quiser, ainda posso parecer bonita!
Mas não quero. Quero que feche teus olhos e veja o que em mim brilha de verdade.
Está lá no fundo, e você precisa procurar bem.
Feche as janelas e veja como meus olhos brilham.

Sou teimosa;
e sempre fui, sempre vou ser e ai de quem quiser que eu mude!
Mas sei ceder, mesmo que doa.
Vou guardar cicatrizes, vou dar com a cabeça na parede, se precisar.
Se quiser que ceda, eu cederei.
Peça-me, e eu cederei se amar-vos.

Sou independente;
demais, e em parte, totalmente atada a tantas coisas!
Não sei pedir ajuda a quem não amo, e sobrecarrego quem me toca.
Posso tentar desatar nós até que minhas mãos sangrem antes de pedir ajuda a um marinheiro qualquer.
Posso sentir-me perdida até que tua mão venha espontaneamente até a minha.
Abraça-me e ajuda-me.

Ouço mal;
não é de agora, é coisa de infância, mesmo.
Mas falar, isso eu sei!
Sussurro, a maior parte das vezes.
Então, se ficar bem, bem quieto, pode me escutar.
Dá pra escutar até aquelas coisinhas que falo entredentes, sem querer, e que carregam o arrependimento junto.
São sussurros baixinhos, bem baixinhos.

Cala a tua boca e me escuta.

estranho no sofá

couchAcordei com um sobressalto. Outro pesadelo, como em muitas noites. Sentei-me na cama, desconfortável por ter caído no sono com as roupas do dia anterior. A porta entreaberta me permitiu o vislumbre de sua mão, largada acima da cabeça, enquanto você dormia no sofá. Você ressonava levemente, e dormia de boca aberta como criança – e tantas vezes o mandei ao médico por isso. Toquei tua mão e em teu sono você virou-se de lado. Sentei-me no chão, de costas para você.

Quantas noites acalmei-me de meus pesadelos na tua companhia muda? Aquela era certamente a que tornava o número incapaz de ser definido. Sorri, aquele meio sorriso que aparece quando a realização toma conta de nós.

Você chegava, até mais de uma vez por semana e trocava as lágrimas do dia pelas bênçãos noturnas da boa companhia. As pessoas perguntavam porque eu dormia tão pouco em algumas noites, e nunca consegui explicar quem você era. Era apenas meu estranho no sofá.

Aquela haveria de ser a última das noites do estranho no sofá. Você foi aparecendo cada vez menos, tomava um café e ia embora. Nada mais de conversas invadindo a madrugada, nada mais de filmes B na tv a cabo. As conversas passaram a ser cada vez mais superficiais, e a companhia tornou-se irrelevante.

Um dia não apareceu mais, e eu demorei duas semanas para notar a tua ausência. Durante algum tempo, quando os pesadelos aconteciam, eu ainda olhava pela fresta da porta, esperando ver a sua mão ali, enquanto você dormia. Sentei-me algumas vezes no chão, de costas para o sofá vazio, e fechei meus olhos imaginando que você estava atrás de mim como em todas aquelas vezes. O sofá sempre frio, desocupado. As almofadas não trocam mais de lugar.

Certa vez acordei assustada de um pesadelo. Não olhei pela fresta. Não espero mais encontrá-lo ali. Levantei-me, tomei um copo de água. Deitei-me no sofá, com a mão acima da cabeça.

Eu nunca soube teu nome. Eu sabia o quanto calçava e você sabia sobre minha verdadeira cor de cabelo. Naquela hora, eu gostaria apenas de poder gritar o teu nome e pedir que voltasse, que ocupasse o sofá e nunca mais fosse embora. Adormeci no sofá frio, sentindo a saudade mais profunda que se pode sentir.

Talvez você  tenha voltado, ou não. Mas o fato é que eu não tive mais pesadelos, então, acho que nunca saberei.