os três freixos

— Mas eu não sou bom com portas — disse o homem. Seus joelhos doíam por ter caminhado por tanto tempo.

Havia três portas fechadas à sua frente. Sobre o que havia além delas ele tinha nenhum conhecimento; acreditava, porém, também não ter o conhecimento necessário para abri-las.

As portas eram tão belas quanto o lugar onde haviam sido esculpidas: tão orgânica e naturalmente que pareciam ter crescido junto aos troncos nos quais se aninhavam perfeitamente. Os largos freixos que em suas bases tinham as três portas estavam dispostos em triângulo perfeito numa clareira no bosque. Era bastante visível e iluminada, mas ninguém conseguiria chegar até lá sem que fosse guiado. Cada porta ostentava símbolos antigos, com significados há muito perdidos, mas que se fossem observados por tempo suficiente, explicar-se-iam com sussurros bem dentro da alma.

Recostada displicentemente em um freixo que ladeava a clareira, a criatura que o havia guiado até lá balançava os pés impacientemente. Tinha grandes olhos verdes e inteligentes que o observavam com um brilho quase alienígena. Ele não entendia os movimentos da fada: ora se assemelhava a um inseto, ora a uma ave noturna, ora a uma adolescente arredia. Os cabelos muito negros com ondas grandes que desciam densos até os ombros eram a única fonte de escuridão da criatura. Sua pele era alva como a lua cheia, suas vestes feitas de folhas secas e penas amarronzadas e suas asas eram compridas e transparentes, tais quais as de uma libélula.

— De todas as desculpas que já ouvi para não abrirem as portas — a fada afirmou enquanto se levantava com a leveza de uma semente alada — “eu não sou bom com portas” definitivamente é a mais absurda. Não gostaria de tentar de novo? Eu realmente não queria motivos para rir dessa situação mais tarde.

— Mas eu não sei o que fazer com nenhuma dessas portas. Não sei qual escolher, porque não sei o que há atrás delas. Não entendo os significados de nada. Não sei o que esperar. E não sei o que estaria perdendo nas outras portas caso abrisse alguma delas. E… eu também… eu também não sei abrir portas.

A fada esvoaçou para perto do homem. Parou bem à frente dele, evidenciando a diferença de tamanho entre os dois. A criatura era baixa, quase como uma criança, talvez pouco menos de um metro e meio de altura. Ele, no entanto, era tão alto quanto os maiores guerreiros de seu clã, mesmo que a ele tivera-se designado o ofício de marceneiro após um importante ferimento em uma batalha. — A madeira não é estranha a você, homem de pedra — a fada escolhera palavras estranhas para se referir ao homem. Ele não entendeu, mas permaneceu em silêncio. — Você não está se permitindo ouvir a voz dela.

— Como se ouve a voz da madeira? — ele questionou, observando a fada, que agora o circundava com passos largos, como se o observasse por todos os ângulos.

— Não com os ouvidos. Deuses, homem! Não creio que tenho que explicar a um marceneiro como ouvir os pobres freixos!

O homem se permitiu alguns momentos de silêncio. — Não ouço nada.

A fada parecia estar impaciente. — Pois bem. Aos que não ouvem, não veem e não decidem, só há uma escolha restante. Você pode abrir qualquer porta, abdicar das outras duas mesmo sem entender nada, e aceitar sua escolha. Ou vou embora e você acha seu próprio caminho de volta.

— Eu preciso de mais tempo. Talvez as portas falem comigo. — o homem pareceu amedrontado com a perspectiva da escolha proposta pela fada. Era difícil pensar com tanta dor nos joelhos.

— Homem de pedra; não há mais tempo, mesmo que o tempo não exista. Eu vou embora. Decida por alguma agora mesmo ou fique sozinho sem abrir nenhuma.

A impaciência da fada parecia quase tangível. O tempo não existia, disse ela, mas, ao homem, pareceu existir infinitamente, concentrado em um único ponto. Por um momento efêmero, ele sentiu como se tivesse acesso a toda a sua vida; as portas nos freixos e seus símbolos mágicos não pareciam mais estar do lado de fora. A clareira, agora, estava do lado de dentro.

Os belos símbolos esculpidos na casca do primeiro freixo traziam ao homem sua infância. Sentiu o aroma do doce de cerejas que sua mãe fazia, a textura das cordas que usava para amarrar o barco a remo da família, a textura das folhas quebradiças sob seus pés nas tardes frias de outono. Ouviu as vozes de seus amigos, os ensinamentos dos anciãos de seu clã e o sabor amargo do primeiro gole de cerveja aos seis anos de idade.

No segundo freixo se aninhavam símbolos que o rememoravam dos momentos que vivera quando havia atingido a vida adulta; guerreava e buscava morrer com honra ao lado de seus irmãos. Havia sido abençoado pelos deuses com um corpo forte, ágil e maior que o de seus inimigos, o que o colocava em vantagem na maioria das batalhas. A memória da glória como guerreiro o inebriava ainda quando ouviu mais uma vez o som de seus dois joelhos se partindo quando, por trás, um rapaz que opunha em campo de batalha ao atingira com uma maça pesada de ferro. Sentiu pela segunda vez o fel de receber o novo ofício como marceneiro, longe das batalhas, onde morreria inglório, sozinho, desonrado, condenado por um golpe sem escrúpulos.

O terceiro freixo tinha runas e símbolos rebuscados que o remetiam a memórias que ainda não tinha. Apareciam como sonhos, incertos, tremulantes e confusos, mas potencialmente verdadeiros, quase como profecias. Viu-se esculpindo belas peças de madeira, com profundas rugas marcando seu rosto. Clientes satisfeitos com seu trabalho caprichoso sorriam quando lhe entregavam gordas bolsas de moedas. Sob a luz do pôr do sol e uma névoa fina, caminhou com certa dificuldade, apoiado em uma bela bengala esculpida com os mesmos símbolos do freixo até a porta de uma casa, onde uma senhora com o rosto igualmente marcado por rugas, mas com olhos bondosos e cabelos muito longos e trançados o aguardava.

Houve apenas mais um efêmero momento de hesitação, e enfim, o homem entendeu. Havia apenas uma escolha, e qualquer uma que fizesse significaria abandonar as outras duas. Sem mais pensar, o homem deu dois passos e abriu a segunda porta.

— Que sua escolha seja tudo o que queria, homem de pedra. Que os bons ventos te tragam boa sorte na sua segunda chance — disse a fada enquanto observava o homem desaparecer para dentro da árvore.

O homem olhou para trás no exato instante necessário para esquivar-se do ataque desonroso pelas costas; o oponente foi punido com um golpe de espada tão profundo em seu pescoço que sua cabeça apenas não foi decepada por um descuido.

Os olhos do homem de pedra agora fulguravam como tempestade de verão. Sozinho, eliminou todos os outros dezessete homens que ainda se mantinham vivos naquela batalha.

Naquela noite, as comemorações foram vastas e o homem de pedra o centro de todos os louros. A ele, todos os brindes e a melhor das mulheres. Houve doce de cereja no banquete, e nenhuma memória lhe foi despertada; criado apenas pelo pai, o homem tinha tido uma infância fria e estoica, mas muito eficiente no treinamento militar. Uma das maiores lições que seu pai havia lhe deixado fora nunca descuidar de sua retaguarda, pois sempre haveria alguém para lhe atacar pelas costas.

Quando a manhã chegou e uma nova batalha se fez necessária, o homem de pedra mais uma vez brilhou como o guerreiro mais voraz.

Três estações se passaram e o homem de pedra se tornava cada vez mais forte. Não havia mais nada em sua mente além de lutar e morrer com honra quando chegasse sua vez. Os deuses estariam em festa esperando sua alma.

Não tardou até que sua hora de fato chegasse. Nem o treinamento intenso ao qual seu pai lhe submeteu a infância toda fora suficiente para impedir que um golpe certeiro em seu abdômen lhe roubasse a vida numa batalha sob uma garoa fina. Seus companheiros todos também morreram. Enquanto ele sentia seus órgãos queimarem por dentro quando o conteúdo de seu estômago perfurado se espalhava entre as vísceras, ouvia os últimos gemidos agonizantes dos irmãos de clã que cresceram com ele.

Não houve casa, bengala nem esposa à porta; não houve velhice nem arte reconhecida em madeira. Morreu com glória e honra, como queria, apenas nove meses após abrir a porta. A escolha fora feita.
Quando os corpos dos homens mortos estavam imóveis e em silêncio, mas suas almas ainda fervilhavam na confusão da morte violenta e repentina, do bosque próximo saiu a fada. Esvoaçou, tocando ocasionalmente as pontas dos dedos dos pés no chão enlameado por água e sangue, como se não se importasse em sujar a pele muito alva.

Quando o homem de pedra avistou a fada, finalmente se lembrou de sua própria presença na clareira. Ele andava a passos rápidos de um lado para o outro perto de seu corpo.

— Não era isso. Era para eu ter morrido e ter sido recebido pelos deuses— o homem vociferou com frustração flagrante.

— Você ainda não sabe o que vem pela frente, homem de pedra.

— Sei que já demora. Vejo meus companheiros caídos todos à espera e nada acontece.

— Algo haverá de acontecer, mas vocês terão de ser capazes de ver e ouvir. Vocês estão todos cegos pelas crenças que carregam. Talvez o que virá pela frente seja diferente do banquete que esperavam. Vocês terão de aceitar.

— Não, não há como ser de outra forma. Os sábios sempre souberam da Verdade.

— Talvez você tenha se esquecido de ouvir o vento e as árvores, homem de pedra.

— Você não faz sentido algum, criatura vil! — a alma estava tão enfurecida que parecia tremular no ar.

—Você ainda tem muito a aprender, criança. Fique em paz. Que sua escolha não o assombre. — a fada disse, virando as costas pela última vez e sem demora embrenhou-se entre os troncos escuros do bosque sob a chuva fina.

—Ora, do que fala, sua pequena… — antes que conseguisse completar a frase com impropérios ditos às costas da criatura, ao homem veio como um raio toda a vida da qual abdicou.

A infância que não tivera mais, as batalhas e o ferimento, a marcenaria, o casamento e a velhice. A morte quando muito velho já não enxergava mais, mas pôde perder a consciência pela última vez enquanto sua esposa lhe entoava melodias antigas. Perdeu-se e enlutou-se por si mesmo, tanto pelo seu corpo que jazia morto aos seus pés, pela alma que não ascendia aos deuses e pela vida que não teve.

Um a um, viu seus irmãos de clã calando as almas que perambulavam inquietas clamando pelos deuses. Àqueles que calavam, era concedido o desvanecimento; ao homem de pedra, a ignorância de seus destinos, e a incerteza de seu próprio.
Seu coração imaterial ainda tempestuoso clamava pela ascensão, gritava pelo retorno da fada. Houve um momento de desespero em que o homem de pedra deitou-se sobre seu próprio corpo, tentando viver novamente.

Nada aconteceu. Por muitos dias, viu seus homens esvanecerem um a um. Por fim, viu-se sozinho.
Então, ele entendeu. Com os olhos da alma ele viu as coisas como eram e viu que os deuses não o aguardavam acima, mas ao lado; não com banquetes pela glória, mas com sabedoria e Lar. Ele não precisava ter morrido em batalha, percebeu. Não havia glória no massacre, a verdadeira honra e glória estava em saber quando não desferir o golpe, os deuses sussurraram em seu ouvido. Havia espaço para guerra, mas, acima de tudo, havia sempre espaço para a paz. Honrado era o homem que guardava sua espada e estendia sua mão ao inimigo caído.

De súbito, ele sentiu como se o mundo se movesse muito rapidamente. O homem então estava parado à frente das três portas nos freixos novamente. A fada o olhava impacientemente.

— Vamos, homem! Sua última chance — ela disse.
O homem caminhou sem hesitar até a terceira porta, e contemplou a velhice que teria. Escolheu sem medo a própria vida, abraçou seu passado, seu presente e seu futuro e das visões oníricas da porta, fez Verdade. Viveu a honra de escolher estar presente todos os dias.

Seus joelhos nunca mais doeram, nem mesmo na noite de núpcias.